Karine descobriu mais emoções do que pode descrever. Seu objetivo era somente conhecer melhor a cultura, a língua e o jeito de ser da Lituânia, nação dos bisavós maternos Pranas e Marijona. O avião ainda taxiava em Vilnius, a capital do país, quando uma série de sentimentos e memórias disparam em seu coração e mente. 

Nascidos em Vilkaviškis, os bisavós de Karine chegaram ao Brasil em 1926, junto com a filha Eugen, de apenas quatro anos, a irmã de Pranas. Como muitos imigrantes, foram encaminhados às lavouras de café, onde viveram em condições de trabalho análogas à escravidão. Mesmo sem ter para onde ir, fugiram da fazenda e recomeçaram suas vidas graças à ajuda de um anjo da guarda. “A história que conheço é que, no dia da fuga, eles foram perseguidos por um capataz até uma estação de trem, onde o guarda que fazia a vigilância impediu a entrada do feitor”, conta a bisneta.

O casal, que no Brasil se tornou Francisco e Mariana, viveu nas cidades de Barretos, Santos, São Paulo (Vila Alpina) e, por fim, São Caetano do Sul. Karine é neta de Anita, filha nascida no Brasil e, portanto, fruto da ânsia por uma vida nova. “Minha bisavó Marijona sempre foi descrita pela minha mãe e avó como uma pessoa carinhosa e querida, mas de poucas palavras. Ela cuidava da casa e da família e preparava alguns pratos típicos da sua terra, como o kugelis (pudim de batata assado no forno), bulviniai blynai (panquecas de batata) e a sopa de beterraba. Tinha longos cabelos lisos, que minha mãe ajudava a pentear todos os dias. Já meu bisavô Pranas passava a maior parte do tempo fora de casa, no trabalho. Chegou ao Brasil como agricultor, porém, autodidata, tornou-se mestre de obras. Um dos seus maiores feitos foi ter participado da construção da escola politécnica e da academia de polícia da USP. Falava lituano e alemão, além do português, que aprendeu aqui no Brasil. Também não era de muitas palavras. Entre as boas lembranças que minha mãe carrega de seu avô estão os saquinhos de pipoca que trazia todos os dias quando chegava do trabalho”.

Na sua visita de dois dias à Lituânia, Karine escolheu conhecer o centro histórico de Vilnius e o castelo de Trakai, localizado a 30 minutos da capital. “Senti como se os meus bisavós estivessem ao meu lado, preparando aquele dia especial, lindo e ensolarado, para me dar as boas-vindas. Eu me emocionei em várias esquinas da cidade, imaginando se algum dia eles ou até outros antepassados meus já haviam andado por ali também”. A hipótese levantada é bem possível. Embora fossem de Vilkaviškis, o casal deve ter passado por ali para pegar o trem que os levou para o porto de onde partiriam para o Brasil. “Também imaginei o pesar que eles devem ter sentido quando se viram obrigados a deixar suas casas e seus familiares, em direção a um país desconhecido, em busca de uma vida melhor”.

Embora o castelo de Trakai fosse um verdadeiro conto de fadas, nenhuma experiência foi mais significativa que caminhar pelo pequeno centro histórico de Vilnius. Nem um outro turista cruzou aquele local de ponta a ponta, com tanto zelo. Karine não mergulhou somente na história, mas na essência dos compatriotas de seus bisavós. Fez, assim, uma viagem que nenhum guia ou roteiro turístico pode proporcionar. “Os lituanos são etnicamente muito parecidos entre si. Encontrei algumas idosas com olhos muito parecidos com os da minha avó, que infelizmente faleceu há alguns anos”. A presença e companhia de Dona Anita foi sentida em cada esquina, em cada prato típico e até nos momentos de descanso. “O quarto na pousadinha onde me hospedei era muito parecido com o que tinha na casa da minha avó, incluindo a cama, os cobertores e o cheiro”.

Saiu daquele fim de semana carregada de lembranças e surpresas. “A Lituânia e seu povo sofreram bastante ao longo da história, com guerras e ocupações. Por esse motivo, antes de ter tido essa experiência, imaginava que que esse fosse um país frio, não apenas em termos de temperatura, mas também em relação ao ambiente e ao relacionamento entre as pessoas. Ao final dessa aventura, acabei descobrindo um país colorido, alegre, com pessoas gentis e que demonstraram ter superado os problemas que, um dia, fizeram meus bisavós Pranas e Marijona emigrar”.

Além de resgatar suas raízes, ela aprendeu muito sobre si. “A sensação de ter estado lá foi de ter encontrado uma peça perdida de um quebra-cabeças, que estava faltando para me completar e me definir como pessoa. Eu não esperava o mix de sentimentos que vivenciei”. A bisneta de Pranas e Marijona voltou à sua rotina revigorada pela silenciosa gentileza, leveza e coragem de seus ancestrais e inspirada pela constituição de Užupis, distrito de Vilnius formado por uma comunidade de artistas do bairro e considerado Patrimônio Mundial da UNESCO. “Acredito que eles, onde estiverem, estão felizes de assistir a tudo isso e de estar de volta à Lituânia através dos meus olhos e dos meus pés”.

CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DE UZUPIS

  1. Todo mundo tem o direito de viver à beira do rio Vilnia, e o rio Vilnia tem o direito de correr por todos.
  2. Todo mundo tem direito à água quente, ao aquecimento no inverno e a um telhado.
  3. Todo mundo tem direito de morrer, mas isso não é uma obrigação.
  4. Todo mundo tem direito de cometer erros.
  5. Todo mundo tem direito de ser único.
  6. Todo mundo tem direito de amar.
  7. Todo mundo tem direito de não ser amado, mas não é obrigatório.
  8. Todo mundo tem direito de ser banal e desconhecido.
  9. Todo mundo tem direito ao ócio.
  10. Todo mundo tem direito de amar e cuidar de um gato.
  11. Todo mundo tem direito de cuidar de um cão até que um deles morra.
  12. Um cão tem o direito de ser cão.
  13. Um gato não é obrigado a amar o seu dono, mas deve ajudá-lo em tempos difíceis.
  14. Todo mundo tem o direito de não ter consciência de seus deveres de vez em quando.
  15. Todo mundo tem direito de estar em dúvida, mas isso não é uma obrigação.
  16. Todo mundo tem direito de ser feliz.
  17. Todo mundo tem direito de ser infeliz.
  18. Todo mundo tem direito de ficar em silêncio.
  19. Todo mundo tem direito de ter fé.
  20. Ninguém tem direito à violência.
  21. Todo mundo tem direito de observar a sua própria insignificância.
  22. Ninguém tem o direito de ter desígnios sobre a eternidade.
  23. Todo mundo tem direito de compreender tudo.
  24. Todo mundo tem direito de não compreender nada.
  25. Todo mundo tem direito de ter qualquer nacionalidade.
  26. Todo mundo tem direito de celebrar ou não celebrar o seu aniversário.
  27. Todo mundo deve se lembrar do próprio nome.
  28. Todo mundo pode compartilhar o que tem.
  29. Ninguém pode compartilhar o que não tem.
  30. Todo mundo tem direito a ter irmãos, irmãs e pais.
  31. Todo mundo pode ser independente.
  32. Cada um é responsável pela sua própria liberdade.
  33. Todo mundo tem direito a chorar.
  34. Todo mundo tem direito de ser mal interpretado.
  35. Ninguém tem o direito de culpar ao outro.
  36. Todo mundo tem direito de ser único.
  37. Todo mundo tem direito de não ter direitos.
  38. Todo mundo tem direito de não ter medo.

(39) Não se deixe vencer.

(40) Não se vingue.

(41) Não se renda.