O pedido ou a poesia no banco de madeira (Foto Pessoal)

Era outubro de 2015. Um vento desaforado arrastava as folhas secas pelo chão de concreto e  insistia em embaralhar os galhos das árvores que ciceroneiam os visitantes da Igreja da Santíssima Trindade, em Stratford-upon-Avon. Frank e Ivy passaram, provavelmente, muitas vezes por ali. Deixaram sua presença gravada em um banco de madeira, uma história que passa despercebida por olhares apressados, que pouco registram a natureza abundante ao redor daquele templo.

Naquela tarde de outono, as árvores brincavam com os poucos raios de sol e espalhavam pelo chão formas geométricas e desenhos tão primitivos quanto o contorno das nuvens carregadas no céu. Talvez o local escolhido por Frank e Ivy não fosse mesmo o mais convidativo – afinal, está rodeado por lápides de pedra cobertas por musgos.

Sim, o banco não emoldura somente o caminho para a igreja, mas também para o cemitério, igual aqueles dos filmes de época ou de terror. Ao filho mais ilustre daquela terra foi concedido um descanso privilegiado e protegido das intempéries do tempo e da natureza. William Shakespeare está enterrado aos pés do altar, tendo a esposa ao seu lado e o resto dos mortais diante de si.

Naquela tarde de outubro de 2015, eu também me sentei diante dele, com quem não tinha, na época, muita intimidade. “Anseio por ouvir a história da sua vida”, imaginei-o dizer, como Alonso a Próspero, em A Tempestade. Tinha certeza de que o Bardo estava entediado pelo silêncio que tomava conta do local, em um dia de fraco movimento. Depois de visitar a casa onde nasceu e ouvir tantas histórias sobre a sua vida e a sua obra, senti-me menos tímida para saciar sua curiosidade, ainda que de forma breve.

Na solidão daquela igreja, não lhe confiei meu amor, tampouco a minha devoção. Fiz-lhe somente uma confissão – não da fã ao ídolo, mas da aspirante a aprendiz ao mestre. Entreguei-lhe palavras nunca então pronunciadas, nem para mim mesma, além de dúvidas que provocavam em mim mais medo que as sombras entre as lápides do cemitério. Senti as lágrimas queimarem a pele já melindrada pelo vento, que havia silenciado milagrosamente qualquer sussurro ou ruído, creio que em respeito àquele momento. Como se tivesse diante de um sacerdote, pedi àquele ser imortal, não mais inerte à minha frente, mas vivo dentro de mim, sua benção.

O túmulo de William Shakespeare, em Stratford-upon-Avon (Foto: Arquivo Pessoal)

Guardei comigo esse encontro tão reservado durante todos esses anos. Somente Frank e Ivy sabiam, porque foi ao lado deles que parei para recuperar minha presença nesse plano. Pouco a pouco, ao me sentar naquele banco, voltei a sentir meus pés sobre o chão e a distinguir de novo as cores desse mundo. Não tentei controlar os cabelos despenteados pelo vento, que, ao adentrar pelas minhas narinas, despertava-me de um sonho. Senti-me embalada pela trilha suave composta pelas árvores, tão imortais e poderosas quanto o poeta que me acolhera, não com suas palavras, mas com o seu silêncio. Quantas vezes elas não testemunharam experiências similares, quantas histórias não guardaram para si, como a de Frank e Ivy, de quem tão pouco sei, com quem tanto compartilhei.

A inscrição no banco de madeira não remete à Shakespeare, o homem celebrado dentro daquele templo e por uma cidade inteira, mas a outra poeta inglesa, Christina Rossetti, cujos versos ganharam em Português a delicadeza e a diligência de um expoente da nossa pátria, Manuel Bandeira.

“Remember me when I am gone away

Gone far away into the silent land”

“Recorda-te de mim quando eu embora

for para o chão silente e desolado”

O pedido de Frank e Ivy ficaram armazenados em algum cantinho da minha alma, escondidos de mim mesma, até descobrir recentemente que o poeta americano Robert Frost escolheu a seguinte frase para a sua lápide:

“Ele teve um caso de amor com a vida”.

Não sei qual a receita de Frost para se apaixonar e manter viva essa paixão durante toda a sua existência, mas suspeito que seja muito mais simples que a luta ferrenha travada diariamente pela felicidade, muito mais sensata que a inquietação que nos toma a cada minuto. Com certeza, não tinha nada a ver com os excessos e acúmulos contemporâneos, com essa ânsia por notificações, memes, curtidas, tweets, trampos, compromissos, check-ins, uma fila de zeros na conta bancária ou de pontos e milhas no cartão de crédito.

Desconfio que esteja mais relacionado a descobrir a beleza escondida em cada hora vivida ou em cada momento ou lugar despretensioso em que nos encontramos, incluindo o banco de um cemitério. A pressa da vida moderna pode nos deixar míopes, assintomáticos ou monossintomáticos e, ironicamente, desconectados. Deixamos de “ver o mundo em um grão de areia e um céu numa flor silvestre”, como escreveu William Blake. Deixamos de saudar os Franks e as Ivys com que esbarramos pelo caminho.  Deixamos de notar o fino tecido da vida, com tantos fios entrelaçados, feitos dos mais diferentes seres, das mais diversas formas, em todas as dimensões do tempo e do espaço. 

Arrisco dizer que, para ter um caso de amor com a vida, é preciso entender que a alma se recolhe e se encolhe ao não poder exercitar os cinco sentidos, brincar com a intuição,  desvendar tesouros internos, contemplar as perfeições infinitas da natureza e alongar a imaginação. Quem sabe até arriscar algo novo, sem pressa, como fez Shakespeare, que aproveitou uma quarentena no século XVI para criar. Nesse período, ele teria escrito ou adaptado Rei Lear ou Antônio e Cleópatra.

Convenço-me, cada vez mais, que “o tempo da alma é vagaroso”, como dizia Rubem Alves. Como todo amor, esse “caso” também exige paciência e persistência, além de muita coragem, para desativar o piloto automático e encontrar a peça que se encaixa, pouco a pouco, nesse quebra-cabeça volátil, incerto, complexo e ambíguo chamado vida.