Eu imagino que o perfume dele muda junto com as leituras: naftalina, suor, sangue, velas. Tem hábitos variados e incomuns: desperta diariamente pronto para atravessar o Inferno, o Purgatório e o Paraíso, ciclo que repete não para pagar pecados, nem para expurgar culpas, mas por pura devoção.
Confesso: nunca morri de amores pelo Papai Noel. Nunca cedi a seus sorrisos, presentes, doces e pirulitos – ainda que tenha aceitado boa parte deles. Talvez seja uma fobia a gente grande usando fantasia fora do carnaval, pois nunca me afeiçoei a palhaços. Passei uma festa no colo do meu avô, só para não ter que interagir com aquele homem colorido e maquiado. Qualquer tentativa de aproximação, era repudiada com gritos histéricos e lágrimas saltitantes. Tampouco me orgulho de ter contado para uma amiguinha que o Polo Norte não era tão longe assim – o velho barrigudo morava no quarto ao lado do dela. “Ela é tão inteligente”, tentei justificar, “merecia saber a verdade”.
Eu já conhecia Isabel há algum tempo, mas só me conectei com ela quando a vi falar sobre suas dores e alegrias, sem lamentos ou excessos. Vi-me diante de uma mulher sóbria, com voz firme e pausada, sem vergonha de contar tudo que viveu.
A senhorinha encostou-se no muro baixo da casa, como se estivesse colando a barriga em um balcão de bar. Em vez de bebidas, frituras e guloseimas, ofereceu histórias sobre os outros habitantes da casa – 3 gatos e 1 cachorro. “Quem briga são os humanos. Esses aí convivem muito bem”, avisou, espatifando sem dó qualquer crença baseada em Tom e Jerry.
É assim que ela está hoje. Encostada em um canto. Já registrou números, dinheiro, histórias. Com o tempo, perdeu seu vigor e até importância. Passou a registrar o tempo e as mudanças que ele inevitavelmente traz.