Era uma tarde de sol com poucas nuvens pintadas no céu azul. Sentia-me abraçada por uma manta leve, que formava em meu corpo uma capa protetora contra o vento hostil, típico dessa época do ano. Repousava sobre o meu colo um livro, cuja história parecia se entrelaçar ao gracioso movimento da natureza ao meu redor. “Em momentos como estes”, disse o protagonista, “vemos a que deplorável espécie de brutos pertencemos.”
Há um ano meus planos se desfizeram. Há um ano a rotina mudou. Há um ano não há mais abraços. Há um ano os encontros distantes se tornaram próximos. Há um ano não viajo, só navego. Há um ano olho nos olhos do medo, da dor, do ódio, do perdão, do amor. Há um ano aprendi o que é fé. Há um ano aprendi o que é desapego. Há um ano escrevo por ofício, por prazer e por urgência. Há um ano estudar se tornou meu oxigênio; ler, meu momento mindfulness. Há um ano aprendi a contemplar, a explorar novas formas de criar, a buscar meios de melhor conviver. Há um ano transito entre a revolta e a resignação. Há um ano reflito sobre o peso do individual no coletivo. Há um ano me despeço de pedaços que já não fazem mais parte de mim. Há um ano aprendi que não sei viver sem sonhar. Há um ano entendi que esses sonhos se reformam e se renovam – às vezes, diariamente. Há um ano meu horizonte se encurtou, mas minha consciência se expandiu. Há um ano aprendi como é fácil colecionar frustrações. Há um ano entendi como me faz bem agradecer. Há um ano mudei como me alimento de comida, notícias, pensamentos, emoções. Há um ano (re)descobri novas e velhas pessoas. Há um ano tento parar de pensar sobre o presente. Há um ano tento entender como chegamos aqui. Há um ano eu seria incapaz de imaginar o que estamos vivendo. Há um ano eu não teria criatividade para conceber este futuro presente. Há um ano eu não seria capaz de imaginar o tanto que essa experiência me transformou – e continua me transformando. Há um ano eu era outra pessoa. Há um ano eu espero por um recomeço. Há um ano eu recomeço todos os dias.
*A primeira contaminação de coronavírus no Brasil foi identificada em fevereiro de 2020. A primeira morte ocorreu no mês seguinte. Também em março o Governo do Estado de São Paulo decretou, pela primeira vez, quarentena no estado. Muitos de nós nunca saímos dela.
Também confinado, Aurélio saiu, literalmente, do armário nessa quarentena. Foi um conselheiro leal, até se tornar… dispensável. A demissão, sem ao menos um “muito obrigada” ou “até logo”, impôs-lhe uma aposentadoria compulsória. Estava decretado o seu fim. Continuar lendo “Entre excessos e carências da quarentena”→