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Doce Viagem

O melhor da vida na nuvem

Sobre livros, cartas, scones e promessas

Como se não bastasse as pilhas de livros não lidos espalhadas pela casa e a outra lista à espera no Kindle, eu me rendi ao Skeelo após ganhar acesso ao “Não fossem as sílabas de sábado”, da Mariana Salomão Carrara.

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Testemunho

De repente, aquelas mãos delicadas tornaram-se descomunais sobre a mesa. Ela estava pronta para narrar a própria história. Não esconde a vaidade, nem tem vergonha de exibir as marcas e manchas inerentes à vida. “Eu até tenho do que me queixar, mas decidi ainda menina não perder tempo com isso”, disse. Garantiu que a adolescente de rímel turquesa, chiclete atrevido e decote ameaçador ainda vive dentro daquela senhora de cabelos platinados, unhas imponentes e sapatos avermelhados. “Eles têm a cor da terra que deixei para trás”, avisa. “Sobrevivi ao sertão quando aprendi que não precisava nem queria ser salva.”

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Um breve conto: O Ato Final

(Autor desconhecido)

José formou-se em música clássica, mas às vezes arranhava no sax uma sofrência para agradar a audiência. Como artista de rua, estava sempre pronto para o improviso. Às terças ele se posicionava na esquina de um bairro nobre, bem em frente a uma movimentada padaria. Tocava, por cerca de uma hora, um pouco de jazz, um pouco de bossa nova e, dependendo da rodada do fim de semana, o hino do Palmeiras. Já havia se tornado amigo daquela freguesia – em especial, de Luigi, dono de uma cabeleira branca vasta e de uma barriga amigável. “Pane, amigos, vino e música me bastam”, dizia, tropeçando nos idiomas.

O italiano trazia de casa uma garrafa de vinho e outra de azeite. Assim que o músico parava de tocar, pedia ao garçom pão quente, frios, pratos e taças. Espalhava os itens entre histórias da sua terra, memórias musicais, feitos e desfeitos do seu time. O ritual se completava com o derramamento do azeite sobre o prato central. Não importava se o rótulo era o mesmo da outra vez. Ele destacava a cor e a acidez antes de encharcar um pedaço generoso de pão fumegante. “Você precisa provar isso aqui”, repetia todas as vezes, como se fosse a primeira e a última chance de provar tal iguaria.

Um dia, José estranhou a ausência de Luigi. Cumpriu o seu script, espiando a mesa vazia. Era a primeira vez que isso acontecia em 3 anos. Nas semanas seguintes, o mesmo aconteceu. Uma senhora, acompanhada de um cachorro pequenino e irritadiço, teve a ousadia de se sentar no canto do italiano. O músico não escondeu a insatisfação. Terminou a apresentação, guardou o instrumento e puxou papo com o gerente. “Sofreu um derrame”, disse o homem. “Não fala, não anda, mal come. Só se acalma quando sente o cheiro do pão quente, que a esposa ou a enfermeira vem buscar quase todos os dias.”

A Serenata, de Schubert, pesou sobre o coração de José, que logo se lembrou que o amigo reprovaria tal trilha. Luigi depositava alegria demais em cada minuto de sua vida. Descobriu onde ele morava e, antes de tocar o interfone, teve uma ideia melhor: atravessou a rua, posou ao lado de uma árvore e tocou as músicas que o amigo mais gostava.

Voltou nas semanas seguintes, logo após a apresentação na padaria. Não se importava em esticar o seu horário, por mais que o cansaço lhe atormentasse. Assumiu aquele momento como uma missão. Não sabia nem se o amigo o escutava. Aguentou as reclamações da vizinhança e criou raízes ali. A árvore sob a qual se sentava ganhou folhas cada vez mais verdes. Quando floriu, as pétalas lhe caiam sobre os ombros como pipoca.

Depois de 7 meses, enquanto guardava o seu instrumento, José sentiu uma presença atrás de si. Encontrou uma senhora cujo rosto ele jamais esqueceria. As marcas das águas derramadas abriram rios em sua pele. Ela o abraçou como se reencontrasse um velho amigo. Antes que ele pudesse lhe perguntar algo, ela lhe entregou uma carta e partiu sem dizer uma única palavra. Se não tivesse aquele envelope em mãos, o músico não acreditaria no que tinha vivido. Diria que fora atropelado por um anjo, interpelado por uma alma bondosa, assombrado por um vulto.

Só teve coragem de abrir a carta de madrugada enquanto a casa dormia. A esposa bem estranhou o seu silêncio, mas o atribuiu ao cansaço. Achava que era maluquice do marido estender o horário de trabalho para tocar para um homem que talvez nem estivesse escutando. José achava graça no ceticismo da mulher. Ela ainda não havia lhe ensinado que algumas sintonias são inexplicáveis. Na privacidade do seu quintal, tendo somente o seu cachorro e a lua como testemunhas, ele desembrulhou a cada palavra o seu coração.

“A três dias, o meu marido, seu amigo, se foi. Seus últimos meses foram muito sofridos, exceto pelos minutos que você o brindava com a sua música. A cada serenata, lágrimas escorriam do seu rosto. No começo, eu queria fechar todas as janelas e até chamar a polícia para evitar que ele ouvisse. Com o tempo, entendi que não era a tristeza que lavava o seu rosto, mas o amor pela vida.

Falo agora o que Luigi gostaria de ter dito: Bravo!

Grazie,
Matilde.”

José levantou-se, olhou para a estrela mais brilhante e reverenciou o amigo. Quando mais uma terça-feira chegou, ele voltou ao seu lugar aos pés da árvore. Tocou da mesma forma, com o mesmo vigor, dessa vez para a viúva de Luigi. No dia em que a janela não se abriu, dois anos depois do primeiro e único encontro com Matilde, ele soube que aquele tinha sido o seu ato final. Missão cumprida.

[Paulistanos Anônimos] Destino de Djavan

(Autor desconhecido)

“Desculpe, mas eu precisava muito falar com alguém”, disse a moça no saguão de um centro cultural. Quando eu me sentei ao seu lado, à espera de uma amiga, nada chamou minha atenção. Seu rosto estava escondido pelo cabelo liso tão longo quanto suas pernas e braços. Em nenhum momento, ela demonstrou notar a minha existência. Até aquele momento.

“Oi?”

Foi tudo que consegui emitir ao ser pega tão desprevenida por aquele pedido. Ela me fitou com hostilidade.

“Você precisa de algo?”, questionei, já me perguntando se tinha ouvido vozes (longe de mim duvidar de eventos sobrenaturais, ainda mais diante deste calor extremo). A hostilidade no rosto dela virou indignação. Como eu não tinha percebido que ela estava em uma ligação? Como eu poderia imaginar que, debaixo daquela cabeleira platinada, havia dois fones sem fio? Quem é que inventou isso e tornou nossa vida ainda mais difícil?

Amiga, você não sabe…”, disse, “acabou. Acabou. A-C-A-B-O-U.

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[Paulistanos Anônimos] Devaneios Literários

Foto do Pinterest / Autor desconhecido

Não foi resolução de Ano Novo, mas uma decisão de mudar a sintonia. Se não dá para sair de casa sem celular, é possível deixá-lo bem escondido na bolsa para observar o mundo além das telas. Não é difícil perceber que sou uma exceção. Nas ruas há cada vez mais pessoas olhando para a palma da mão ou absortas da realidade com os seus fones de ouvido, completamente desconectadas do entorno. Engajam-se em conversas com interlocutores distantes, escutam músicas e leem histórias, sem perceber os personagens, a trilha e a narrativa do lugar onde vivem ou por onde passam.

 Ou não.

Aquele jovem cabeludo e tatuado nem imagina que, ao ingressar na estação da linha amarela, ajudou a derrubar algumas crenças – a começar pelo livro de, pelo menos, 600 páginas, carregado como se fosse um pequeno haltere. Não dizem que as novas gerações não leem? Aquele calhamaço era 100% analógico. Aposto que tinha letra pequena e nenhuma outra ilustração além daquela na capa. Não consegui identificar o título, mas dava para sentir o cheiro de sangue talhado na espada reluzente do herói.

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Inspiração e esperança

Alaíde Costa, no Sesc Pompeia, em 04/01/2024.

Eu sabia muito pouco sobre Alaíde Costa, mas me emocionei assim que subiu ao palco do Sesc Pompeia. Ela, que começou a cantar ainda menina, tomou gosto pela coisa ao se inscrever em concursos de música. Encontrou-se neste caminho e se entregou a ele.

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Perspectivas



Silêncios e ausências machucam
o vazio lateja
o espaço comprime
tudo que poderia ter sido
e não foi
por quê?

Silêncios e ausências restauram
o vazio expande
o espaco ecoa
tudo que pode ser
muito além da imaginação
por que não?

🌸

Devaneios de uma revisora

Foi conjugando verbos que me tornei fã do presente do indicativo. Passei a questionar por que fugimos dele, abraçando estrangeirismos ou vícios de outros idiomas. De onde vem esse medo de se lançar em sua simplicidade e objetividade?

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