Foto do Pinterest / Autor desconhecido

Não foi resolução de Ano Novo, mas uma decisão de mudar a sintonia. Se não dá para sair de casa sem celular, é possível deixá-lo bem escondido na bolsa para observar o mundo além das telas. Não é difícil perceber que sou uma exceção. Nas ruas há cada vez mais pessoas olhando para a palma da mão ou absortas da realidade com os seus fones de ouvido, completamente desconectadas do entorno. Engajam-se em conversas com interlocutores distantes, escutam músicas e leem histórias, sem perceber os personagens, a trilha e a narrativa do lugar onde vivem ou por onde passam.

 Ou não.

Aquele jovem cabeludo e tatuado nem imagina que, ao ingressar na estação da linha amarela, ajudou a derrubar algumas crenças – a começar pelo livro de, pelo menos, 600 páginas, carregado como se fosse um pequeno haltere. Não dizem que as novas gerações não leem? Aquele calhamaço era 100% analógico. Aposto que tinha letra pequena e nenhuma outra ilustração além daquela na capa. Não consegui identificar o título, mas dava para sentir o cheiro de sangue talhado na espada reluzente do herói.

A plataforma estava vazia. Ele se posicionou de um lado; eu, do outro. Politicamente corretos, deixando o corredor central para os usuários saírem. Dizem que opostos se atraem, mas eu ainda acho que é o contrário. Pois logo atrás dele, antes do metrô chegar, um rapaz se postou e, ao contrário de mim, que só observava, disparou a fazer perguntar.

O curioso é que os dois usavam fones, que não foram um entrave à comunicação – pelo contrário os dispositivos pareciam acessórios, não só para compor look, mas também para limpar o ruído ou distrações do metrô. Por sorte ou destino, sentamo-nos perto, o que me permitiu acompanhar o bate-papo literário. “Sou muito chato para histórias”, disse o dono da ficção sangrenta. “Gosto mesmo é de ser surpreendido – e isso está cada vez mais difícil.”

Para ele, os livros do ensino médio seguem sempre um padrão (Sério?, eu queria gritar). Uma vez identificado, logo nas primeiras páginas, lá se vai todo o frescor da história, segundo ele. (Não consegui conter a minha sobrancelha esquerda, desconfiada e petulante. Ela logo se levantou desconfiando do colega leitor, completamente engajado na conversa – ou palestra – com o segundo elemento). Disse ainda que isso também se aplica aos filmes da Disney. “Quem ainda consegue assistir?”, perguntou, decepcionando claramente o interlocutor ao seu lado, que afundou na poltrona, completamente incapacitado de contra-argumentar ou frustrado por não resistir à mágica da turma do rato.

As histórias de vampiros, continuou o cabeludo, tinham bons enredos até se renderem, assim como os filmes de super-heróis, ao romance, caindo no clichê. “Não que isso seja totalmente ruim”, explicou. “Tem muito clichê que é um bom feijão com arroz, pois cumpre o seu propósito.”

A essa altura, o interlocutor quase se debruçou sobre o outro. (Eu também, confesso. Seria este o momento da nossa redenção? Não sei o que mais me intrigava: as teorias literárias de um; as reações do outro, equilibrado na ponta da poltrona para beber daquela fonte de sabedoria, sem sequer tirar o fone do ouvido.) O mestre tatuado não se mostrou imune à fascinação que exercia sobre o outro (só sobre o outro!). “Já assistiu John Wick?”, perguntou. “É a clássica história do mercenário, mas é um feijão com arroz bem-feito, criado não para nos fazer pensar, só passar o tempo.”

Não sei se o metrô deu um tranco ou se foi meu cérebro que bugou. Perdi alguns minutos da conversa imaginando Keanu Reeves como o meu descanso ativo, entre tantos tiros, perseguições e mortes. Não, não. Posso até admitir que a história, ou a falta dela, principalmente nos últimos filmes (sim, eu assisti. T-O-D-O-S, incluindo a série sobre o Hotel Continental), era boa, mas a tensão ainda estava lá. Eu sabia que John era intocável, mas e se? Depois de cada filme, meu corpo sempre pediu um alongamento; meu cérebro, água com açúcar.   

Tive vontade de participar da conversa, ou monólogo, pois entendia o que ele queria dizer. “Como os filmes de Natal!”, adicionaria, pontuando que o melhor “feijão com arroz” é aquele no qual a violência dá lugar à ingenuidade e ao encantamento, dois elementos em risco de extinção na nossa sociedade. Antes que pudesse me manifestar, fui fisgada pelo anúncio da chegada da minha estação. O relógio não me deixava mergulhar completamente naquele universo real e, também, ficcional. Havia chegado a hora de descer e de invadir outras realidades – incluindo a minha.

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