De repente, aquelas mãos delicadas tornaram-se descomunais sobre a mesa. Ela estava pronta para narrar a própria história. Não esconde a vaidade, nem tem vergonha de exibir as marcas e manchas inerentes à vida. “Eu até tenho do que me queixar, mas decidi ainda menina não perder tempo com isso”, disse. Garantiu que a adolescente de rímel turquesa, chiclete atrevido e decote ameaçador ainda vive dentro daquela senhora de cabelos platinados, unhas imponentes e sapatos avermelhados. “Eles têm a cor da terra que deixei para trás”, avisa. “Sobrevivi ao sertão quando aprendi que não precisava nem queria ser salva.”

Diz que atravessou o vale das sombras da ingratidão, fez as pazes com a solidão, arrancou rótulos, abdicou dos títulos. Escapou de afogamentos, prisões, culpas e lamentações. Aceitou derrotas, investigou erros, tirou a limpo o passado.

Há quem diga que ela se reinventou, há quem insista que ela está perdida, há quem desconheça quem ela se tornou. Às vezes, tropeça em ilusões. O seu espírito sai arranhado, mas se mantém intacto. É forjado por uma fé que não se aprende na igreja, no culto, na doutrina ou na religião, mas na lágrima, no suor, na superação e na realização.

Ela não se sente invencível, tampouco impermeável. Parte sua ainda busca agradar, ainda quer aprovação, ainda quer pertencer. Ainda se apequena, ainda se entristece, ainda se machuca. Mas já aprendeu a se perdoar, a rasgar os limites, a desafiar as crenças, a flertar com o improvável. Agora quando chora é para se lembrar da sua força e da sua humanidade.

Nunca teve paciência para os livros, tampouco aprecia palavras, conceitos e teorias. O diploma que perseguiu não estava no programa oficial de nenhuma universidade. “Está gravado dentro de mim, em um universo próprio, uma linguagem desconhecida, entrelaçada à alma do mundo”, afirma.

Já não vive com pressa, nem sente ansiedade. Antes do seu ponto final, aproveita toda a vida existente entre vírgulas. Pinta realidades diferentes em sua mente, mas aceita e reverencia a que está diante de si. É dela que tira o sumo dos seus dias. É nela que experiencia o viver.