Antes da nova exposição do MIS abrir as portas, mergulhei em Vira-Lata de Raça, a autobiografia de Ney Matogrosso.
Selecionei cinco memórias que ele compartilha ao longo do livro como um convite para explorar essa edição primorosa da Tordesilhas, organizada por Ramon Nunes Mello a partir de longas conversas com o artista.
Vamos a elas:
#1 “Com o sucesso do grupo, os componentes me chamaram para uma reunião com eles e o empresário, para me dar uma enquadrada por conta do meu jeito de ser.”
O estrondo causado pelo Secos & Molhados não passou despercebido —nem pela censura, que via no grupo uma ameaça à moral e aos bons costumes, nem por certos donos de teatro, como a lendária Ruth Escobar, atônitos com a ousadia estética e performática da banda. Até dentro do próprio grupo que Ney enfrentou uma tentativa de contenção.
A inquietação dos colegas vinha das reações externas: as insinuações sobre a sexualidade dos integrantes e os rótulos atribuídos ao grupo. Nos corredores do poder, os militares os chamavam de “viados comunistas”. No palco, Ney – com sua dança, seu figurino e sua entrega – se tornava o epicentro do incômodo.
Mas recuar não era uma opção. “Eu disse simplesmente que eles dissessem que não eram – eu iria continuar me comportando do mesmo jeito, pois o acordo era o meu direito de me expressar livremente.”
#2 “A maior autoridade que enfrentei na minha vida foi Antonio Matogrosso Pereira.”
Ney nunca aceitou se curvar a ninguém – nem mesmo ao próprio pai, um “militar, conservador, cabeça dura”. Foi ali, no núcleo familiar, que ele enfrentou sua primeira batalha contra a repressão e a discriminação. A violência, tanto verbal quanto física, veio cedo – e justamente de quem deveria protegê-lo das ameaças externas.
Ainda menino, Ney encontrou refúgio na natureza. Preferia a solidão, entre bichos e plantas, a se conformar “com os preconceitos e incoerências que enxergava no universo dos adultos.” Sua mãe tentava protegê-lo, mas sem desafiar o marido. O ciclo de opressão só se quebrou quando ele saiu de casa aos 17 anos, depois de se alistar na Aeronáutica.
“Servi na polícia da Aeronáutica, andava armado com uma Colt 45, fui obrigado a aprender a atirar. Era o único lugar que eu poderia ir, como voluntário aos 17 anos, para ficar longe do horror que eu vivia em casa.”
Anos mais tarde, os dois se reconciliaram e se tornaram amigos. As conversas mais íntimas aconteceram quando o pai estava doente. O homem durão confessou ter se arrependido de ter criado os filhos “de forma tão conservadora e autoritária”. “Costumo afirmar que eu dei sorte de ter nascido filho de militar, porque isso já me colocou como transgressor. (…) Sou grato a ele por toda essa experiência de vida, inclusive pela oportunidade de morar em diferentes lugares, que, apesar de não permitir que eu firmasse laços de amizade [na infância, a família morou em várias cidades, de estados diferentes], me ensinou ser independente, desapegado. Gosto de não ter apego, ser livre.”
#3 “Não sou uma pessoa que chora por qualquer coisa, poucas vezes na minha vida chorei. Conto nos dedos esses momentos.”
Para Ney, diálogo e racionalidade são caminhos mais naturais do que o descontrole emocional. Sua conexão com a natureza, herdada da infância solitária, o fez uma pessoa intuitiva e introspectiva – muito diferente da imagem de festa e barulho que muitos projetam sobre ele, ainda que ele tenha tido uma época de “esbórnia” (década de 1970).
“O silêncio alimenta minha criatividade, com ele fico aberto para que as ideias possam chegar com tranquilidade de repente. Em meio a esse mundo maluco, necessito do silêncio para criar e ficar em paz.”
Foi na arte que Ney encontrou uma forma de domar a violência que carregava dentro de si. Ela lhe trouxe vida, dignidade e, paradoxalmente, a oportunidade de transformar essa fúria em expressão.
“Só não enlouqueci com a violência que carregava dentro de mim porque a arte me resgatou e me trouxe vida e dignidade. (…) Quando me tornei um artista, peguei aquela violência estranha que eu carregava e coloquei toda na minha arte. Não à toa, nos meus primeiros shows exercitava o confronto: um homem nu, de voz aguda, requebrando no palco num país em plena ditadura militar.”
#4 “…chique para mim é ter liberdade. Principalmente a liberdade de escolher o trabalho que quero fazer da forma que entendo que deve ser.”
Coisa mais linda é quem entende que elegância não está na ostentação, mas na autonomia e na coragem de trilhar o próprio caminho. Embora seja mais conhecido pela música, a inquietação criativa de Ney o faz navegar por múltiplas linguagens – teatro, cinema, iluminação, figurino e direção.
No filme Luz nas Trevas – A Volta do Bandido da Luz Vermelha, de Helena Ignez, ele encarou um desafio à sua medida: atuar praticamente sem ensaios. A diretora queria preservar sua espontaneidade, mantendo o frescor das falas e da interpretação. “Gosto de entrar em projetos assim, que me colocam em uma situação de desafio de criar algo que me transforma no processo.”
Além de já ter dirigido bandas e cantores (de RPM a Ana Cañas), Ney iluminou e dirigiu espetáculos – inclusive, infantis. “Com todas essas experiências de teatro descobri que gosto mais de dirigir o ator do que a cena. É a questão da consciência da palavra, é o mesmo trabalho que busco ao cantar, de encontrar a nuance e o significado das palavras. Tenho tesão nas palavras.”

#5 “Não me enquadro em nada, mas ainda insistem em me rotular.”
Ney sempre esteve à margem das definições. Viveu sua sexualidade com liberdade, sem amarras ou concessões, experimentando o que quis, quando quis. Desde criança, soube que era diferente – e nunca tentou ser outra coisa. Diz que prefere hoje a solidão, mas sem melancolia.
“Eu sou um ser humano que pensa, que raciocina e que reflete sobre o mundo. Sou a favor da diversidade e das liberdades, não de rótulos.”
Seu compromisso com a coerência sempre foi inegociável. Ele escolheu a verdade, recusou as máscaras e, por isso, olha para trás sem arrependimentos.
“Amo ser assim, amo ser quem sou. Escolhi não ter de conviver com as mentiras, mas ter a liberdade de me expressar como desejo. Sinto um enorme prazer de não ser um hipócrita e muito menos ser submetido à hipocrisia. Eu nasci transgressor, vou morrer transgressor.”
É pura inspiração que fala?
É muita sensibilidade, coragem, sabedoria autenticidade e criatividade em um ser só.
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PS1: Outra biografia famosa de Ney foi escrita por Julio Maria, autor também de uma biografia de Elis. Essa eu não li, mas aceito de presente. 😀
PS2: E não dá para esquecer que vem aí um filme sobre o Secos & Molhados, com Jesuíta Barbosa no papel de Ney. O lançamento está previsto para 1º de maio.
PS3: A mostra no MIS é uma homenagem aos 50 anos de carreira do artista. Abre amanhã, 21/02/2025.




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