Pablo e Matilde na foto que ilustra a capa do livro de memórias da cantora e terceira esposa do poeta chileno

Não é possível passar pelo Chile e não (re)conhecer Pablo Neruda. O poeta do amor foi o verdadeiro condor-dos-andes, assim como sua última esposa, Matilde Urrutia, também foi a perfeita expressão desta ave imponente, cujas características são motivo de orgulho nacional.

Independente do passeio que fizer, você certamente escutará do guia turístico a história do condor-dos-andes, cuja distância entre as asas abertas somam três metros de comprimento. Reza a lenda que o macho, ao ficar viúvo, comete suicídio. Sobe o mais alto possível, até onde suas forças o levarem, para despencar em queda livre, com as asas completamente fechadas. Já a fêmea, após a morte do parceiro, retoma a vida (inclusive, escolhendo um novo pretendente, se assim desejar).

Assim também é a história de Pablo e Matilde, que se conheceram no México e mantiveram um romance secreto por décadas. Ela enalteceu o lirismo do poeta, que lhe dedicou obras apaixonadas, como Os Versos do Capitão.

“Ay vida mía, no sólo el fuego entre nosotros arde sino toda la vida, la simple historia, el simple amor de una mujer y un hombre parecidos a todos” *

 

Pablo foi a fonte de muita alegria e angústia para Matilde, já que era casado. Em suas memórias, revela que traiu a si mesma – afinal, ela, que sempre foi contra mentiras, se deixou apequenar por aquela situação. Foi tomada por urticárias, mas não conseguiu abafar o que sentia.

 “Había algo que nosotros ignorábamos hasta ese momento: mucho amor.

Ese bichito nos había picado al uníssono, y transformaria esta amistad alegre, juguetona, que habíamos tomado como una travesura divertida, en uma complicada lucha de sentimentos; nos traería sufrimientos, nos haría subir a la plenitude del gozo y también nos traería la aflicción, el desaliento” **

 

Matilde desapareceu, muitas vezes, da vida dele, de quem engravidou duas vezes. Nenhuma das gestações foi adiante.

“La vida nos está amarrando. Creo que esta vez nuestra unión es definitiva. Ojalá no me equivoque, porque conocer a Pablo como ahora lo conosco ha hecho de mí outra mujer, y creo que ya no encajo em mi vida anterior. Sería terrible para mí perderlo ahora” ** 

 

Deixou, então, sua bem-sucedida carreira de cantora no México para trás e abraçou os amigos e a vida de Pablo. Tornou-se sua esposa, sua amante, sua amiga, sua secretária, sua curadora. Por ele, voltou ao país onde nasceu e fez as pazes com essa nação, que sempre foi a verdadeira paixão do poeta.

“Según el, no había en el mundo playa como Isla Negra. En uma ocasión estábamos em Europa, y Pablo me dijo: “Yo quero regresar, ya no puedo más de deseos de ver el mar”. Una gran carcajada mía le respondió porque todo esto me lo decía paseándose por la orilla del mar, em Viareggio. (Estábamos ahí como invitados; esse año le dieron el Premio Viareggio). El me miró y me dijo: “Si, esto no es mar. No ve que no se mueve, no ruge y, además no huele? Esto no es mar” **

 

Junto com Matilde, Pablo construiu três casas: em Santiago, Valparaíso e Isla Negra, todas de acordo com o seu gosto e as suas preferências. Quase enlouqueceu o arquiteto, porque era ele quem decidia a vista e escolhia a decoração – por vezes, divertida, como a porta secreta dentro do armário de louças, de onde pregava peças nos convidados ou sumia discretamente para um cochilo após as refeições. No jardim, enquanto ela cuidava das plantas, ele escutava os passarinhos.

Tudo que ganhou em vida, inclusive a quantia referente ao Prêmio Nobel de Literatura, Pablo também gastou em vida, fazendo da sua existência tão simples quanto encantada.

“En Isla Negra está su mesa de trabajo. Cuando van visitantes por primera vez a la casa, le muestro esta y les digo: “Aquí Pablo escribía su poesia, amaba extraordinariamente esta mesa”. La miran, unas veces extrañados, otras, indiferentes. Es sólo uma pobre mesa. Por lo general, la gente que visita la casa de Isla Negra no ve elas cosas que Pablo más amaba porque siempre son las más sencillas, las de menor valor material. Amaba y buscaba las piedras suavizadas por la acción del tempo; las raíces lo fascinaban, tenía muchos pedazos de madera que encontrava em los bosques, me decía que eran como pequenas esculturas. Así, esta casa era para él su universo alucinado; sólo él entendia el valor de sus objetos. Yo, como su sombra, también lo entendia” **

O último voo do condor ocorreu assim que o discurso de Salvador Allende tomou o rádio, horas antes do então presidente ser assassinado e o Palácio de la Moneda ser incendiado. Pablo previu que aquele era o fim – ninguém imaginava que seria também o dele. Morreu, como protestaram os amigos, do “Mal do Chile”. Em uma casa tão despedaçada quanto sua alma, foi velado.

Matilde retomou a vida no país que seu amor tanto amava. A vulnerabilidade do seu luto não foi aceita nem pelos militares, nem pelo povo. Da morte e da dor, nasceu outra mulher.

“Había comenzado, sin darme cuenta, la comedia más grande de mi vida. Me hice el firme propósito de que todo el mundo me viera de pie, firme, serena, trabajando. En este momento, no sabía muy bien de qué se trataba, sentía que en ello había una apuesta, o un desafio a la vida” **

Abrigou em seus braços mães e esposas, também vítimas da ditadura militar chilena. Encontrou nelas e por elas a força para secar as lágrimas. Vigiada, venceu o medo e reconstruiu com as próprias mãos a casa de Santiago, destruída por apoiadores do golpe. Também terminou e editou as memórias do marido, além de ter criado a fundação que preserva seu legado.

“Yo he sido una mujer con suerte. La vida me dio a Pablo y, con él, me lo dio todo. En la vida, un gran amor es como una gran defensa, allí se estrellan las dificultades. El amor es uma montaña inamovible y serena” **

 

Ao visitar La Chascona em busca de Neruda, somos recebidos pela valentia e pelo entusiasmo de sua mulher descabelada. Matilde morreu em 5 de janeiro de 1985, mais de dez anos depois do poeta. Dizem que suas últimas palavras foram:

“Me siento feliz. Por fin voy a encontrarme con mi Pablo” ***

 

Seus restos mortais estão enterrados em Isla Negra, junto do amado e em frente ao mar que ele tanto amava. Suas almas voam livres, como sempre foram, com a imponência e a beleza do condor-dos-andes.

* Trecho de Os Versos do Capitão, por Pablo Neruda

** Trechos de Mi Vida Junto a Pablo Neruda, por Matilde Urrutia

*** Trecho da matéria publicada pelo jornal El País, em 6/01/1985