Doce Viagem

Eu imagino que o perfume dele muda junto com as leituras: naftalina, suor, sangue, velas. Tem hábitos variados e incomuns: desperta diariamente pronto para atravessar o Inferno, o Purgatório e o Paraíso, ciclo que repete não para pagar pecados, nem para expurgar culpas, mas por pura devoção.

Alberto Manguel é um beato das palavras. Cultua os livros com os pés no chão, sabendo que eles nada mais são que um “objeto de papel com manchas de tinta”, cujo valor é dado pelo leitor. Esse, aliás, parece ser o papel social em que mais se sente confortável. Já vestiu outros chapéus – alguns bem cobiçados. Foi livreiro, é escritor, foi diretor da Biblioteca Nacional da Argentina, cargo, aliás, ocupado antes por Jorge Luis Borges, a quem serviu como canal para o mundo das histórias durante quatro anos.

Acontece que é na leitura que Manguel se deleita. Chega a acordar com os primeiros raios do sol para que a rotina e, principalmente, a burocracia, não roube de si o que mais ama fazer. É com essa devoção que ele ensina que “o leitor ideal possui um perverso senso de humor. O leitor ideal jamais conta quantos livros tem. O leitor ideal é generoso e ávido ao mesmo tempo. O leitor ideal gosta de usar o dicionário. O leitor ideal julga o livro pela capa. O leitor ideal não sabe que é o leitor ideal até chegar ao final do livro. O leitor ideal compartilha a ética de D.Quixote, o desejo de Madame Bovary, a luxúria da esposa de Bath, o espírito aventureiro de Ulisses, a integridade de Holden Caulfield, ao mesmo no espaço narrado. O leitor ideal é, para um livro, a promessa de ressurreição. A leitura não depende de leitores ideais, mas apenas de leitores suficientemente bons.”

E, então, vamos ler?

*Alberto Manguel é argentino, mas mora hoje em Portugal, onde se dedica à criação do Centro de Estudos da História da Leitura, no Palacete dos Marqueses de Pombal, em Lisboa. Acima foram citados trechos da entrevista à Quatro Cinco Um e do livro Notas para uma definição do leitor ideal, da Edições Sesc.