José formou-se em música clássica, mas às vezes arranhava no sax uma sofrência para agradar a audiência. Como artista de rua, estava sempre pronto para o improviso. Às terças ele se posicionava na esquina de um bairro nobre, bem em frente a uma movimentada padaria. Tocava, por cerca de uma hora, um pouco de jazz, um pouco de bossa nova e, dependendo da rodada do fim de semana, o hino do Palmeiras. Já havia se tornado amigo daquela freguesia – em especial, de Luigi, dono de uma cabeleira branca vasta e de uma barriga amigável. “Pane, amigos, vino e música me bastam”, dizia, tropeçando nos idiomas.
O italiano trazia de casa uma garrafa de vinho e outra de azeite. Assim que o músico parava de tocar, pedia ao garçom pão quente, frios, pratos e taças. Espalhava os itens entre histórias da sua terra, memórias musicais, feitos e desfeitos do seu time. O ritual se completava com o derramamento do azeite sobre o prato central. Não importava se o rótulo era o mesmo da outra vez. Ele destacava a cor e a acidez antes de encharcar um pedaço generoso de pão fumegante. “Você precisa provar isso aqui”, repetia todas as vezes, como se fosse a primeira e a última chance de provar tal iguaria.
Um dia, José estranhou a ausência de Luigi. Cumpriu o seu script, espiando a mesa vazia. Era a primeira vez que isso acontecia em 3 anos. Nas semanas seguintes, o mesmo aconteceu. Uma senhora, acompanhada de um cachorro pequenino e irritadiço, teve a ousadia de se sentar no canto do italiano. O músico não escondeu a insatisfação. Terminou a apresentação, guardou o instrumento e puxou papo com o gerente. “Sofreu um derrame”, disse o homem. “Não fala, não anda, mal come. Só se acalma quando sente o cheiro do pão quente, que a esposa ou a enfermeira vem buscar quase todos os dias.”
A Serenata, de Schubert, pesou sobre o coração de José, que logo se lembrou que o amigo reprovaria tal trilha. Luigi depositava alegria demais em cada minuto de sua vida. Descobriu onde ele morava e, antes de tocar o interfone, teve uma ideia melhor: atravessou a rua, posou ao lado de uma árvore e tocou as músicas que o amigo mais gostava.
Voltou nas semanas seguintes, logo após a apresentação na padaria. Não se importava em esticar o seu horário, por mais que o cansaço lhe atormentasse. Assumiu aquele momento como uma missão. Não sabia nem se o amigo o escutava. Aguentou as reclamações da vizinhança e criou raízes ali. A árvore sob a qual se sentava ganhou folhas cada vez mais verdes. Quando floriu, as pétalas lhe caiam sobre os ombros como pipoca.
Depois de 7 meses, enquanto guardava o seu instrumento, José sentiu uma presença atrás de si. Encontrou uma senhora cujo rosto ele jamais esqueceria. As marcas das águas derramadas abriram rios em sua pele. Ela o abraçou como se reencontrasse um velho amigo. Antes que ele pudesse lhe perguntar algo, ela lhe entregou uma carta e partiu sem dizer uma única palavra. Se não tivesse aquele envelope em mãos, o músico não acreditaria no que tinha vivido. Diria que fora atropelado por um anjo, interpelado por uma alma bondosa, assombrado por um vulto.
Só teve coragem de abrir a carta de madrugada enquanto a casa dormia. A esposa bem estranhou o seu silêncio, mas o atribuiu ao cansaço. Achava que era maluquice do marido estender o horário de trabalho para tocar para um homem que talvez nem estivesse escutando. José achava graça no ceticismo da mulher. Ela ainda não havia lhe ensinado que algumas sintonias são inexplicáveis. Na privacidade do seu quintal, tendo somente o seu cachorro e a lua como testemunhas, ele desembrulhou a cada palavra o seu coração.
“A três dias, o meu marido, seu amigo, se foi. Seus últimos meses foram muito sofridos, exceto pelos minutos que você o brindava com a sua música. A cada serenata, lágrimas escorriam do seu rosto. No começo, eu queria fechar todas as janelas e até chamar a polícia para evitar que ele ouvisse. Com o tempo, entendi que não era a tristeza que lavava o seu rosto, mas o amor pela vida.
Falo agora o que Luigi gostaria de ter dito: Bravo!
Grazie, Matilde.”
José levantou-se, olhou para a estrela mais brilhante e reverenciou o amigo. Quando mais uma terça-feira chegou, ele voltou ao seu lugar aos pés da árvore. Tocou da mesma forma, com o mesmo vigor, dessa vez para a viúva de Luigi. No dia em que a janela não se abriu, dois anos depois do primeiro e único encontro com Matilde, ele soube que aquele tinha sido o seu ato final. Missão cumprida.
Os humanos estavam cheios de adjetivos maldosos para o girassol que permanecia estacionado à beira de uma das avenidas mais movimentadas da cidade. Nada parecia afetá-lo: nem os xingamentos, nem as buzinadas, nem as gargalhadas.
Lucas sabia que seu destino era diferente do da sua mãe, hipocondríaca, que passou a vida lendo bula e consultando segundas, terceiras e quartas opiniões para doenças que não tinha.
Lucas sabia que seu destino era ser livre, segundo uma triangulação curiosa em seu mapa astral, atestada por dois, três, quatro astrólogos que ele consultou.
O pequeno feixe de luz que atravessava o quarto empoeirado por uma fresta da janela era uma presença solitária naquela casa amargurada pelos ventos opostos que insistiam em chacoalhar sua estrutura.
O clima naquela região do país havia mudado bruscamente – a primavera, em vez de colorir e perfumar os ambientes, ressecava as paredes externas, que despelavam em camadas cada vez mais profundas; o verão, agora de escassas tempestades, expirava para dentro da casa o cheiro de mofo das memórias de dias felizes cada vez mais distantes; as rajadas de vento do outono rasgavam os papéis de parede, expondo feridas antigas, mas ainda presentes no concreto esfacelado; o inverno, enfim, selava os ecos das sombras durante as noites extensas e geladas da mais pura solidão.
Em outros tempos, em uma outra época, a gente se encontraria em um café despretensioso, onde você notaria como brinco com a colher, só para acariciar o café amargo, em um súplica silenciosa para ter coragem para fitar seus olhos.
Era assim que João era conhecido no bairro onde morava. Trabalhou a vida inteira em um banco. Sua dedicação era elogiada pelos chefes: era o primeiro a chegar e o último a sair. Mal almoçava e férias, bem, essas ele fingia que desfrutava, porque continuava a frequentar o banco, só para desafogar os colegas e atender clientes preferenciais.
Nunca se casou. Com os vizinhos, por falta de tempo, era monossilábico. Não tinha amigos e até a família ele tratava como os clientes – com simpatia, na mesa de trabalho, tentando resolver mais de um problema ao mesmo tempo. Não sabia agir de outra forma. Não sabia viver de outra forma. Ao trabalho se resumia a sua vida; o banco era o seu sobrenome. Até o dia em que sua ausência foi sentida. Onde estava João?
Os amigos estranharam a aparência de Heloísa, que desembarcara do México usando nada além de calça jeans, camiseta branca e tênis. Estava sem maquiagem, não exibia aquele sorriso malicioso, nem destilava piadas e ironias entre frases tiradas dos diários da sua artista favorita.
Heloísa era conhecida por seu fascínio por Frida Kahlo e gostava de colorir seu mundo como a pintora mexicana. Seus cabelos só não eram mais longos que os colares que lhe caíam sobre o colo e alongavam sua silhueta. Flores sempre adornavam seu rosto ou roupa e, mesmo no calor tropical, não dispensava o uso de botas pesadas.