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Eu tinha nove anos quando pisei pela primeira vez no Crematório da Vila Alpina. O dia estava nublado e chuvoso, enfatizando a tristeza do adeus. A imaginação, a ingenuidade e a dor de uma criança que se despedia do seu amado avô criou memórias fragmentadas e até sombrias, infiltradas de uma sinfonia fúnebre intercalada com vozes do além e som de ossos se quebrando.

Temi por muitos anos a segunda visita, que chegou, inevitavelmente, há menos de dez anos por uma pessoa não menos amada. Não me despedi da minha bisavó ali, porque a carrego dentro de mim, assim como a meu avô. Contudo, aquele dia monocromático tornou-se um marco sem graça de uma vida sem ela.

Lembro-me da música preferida dela preenchendo aquele salão, entorpecendo-me de dor.  Dessa vez, porém, aquela cena não deixou marcas ou registros em mim. Nada, nem o tempo, é capaz de me roubar a imagem que guardo dela ouvindo aquela canção, na sala da casa dos meus pais. O sorriso fascinante que abria e a lágrima que junto caía. É isso que guardo comigo.

Essa música tocou em uma passagem recente por aquele lugar. Mesmo comovida com a perda de uma pessoa querida, não pude deixar de notar as contradições (ou seriam ironias?) da vida. Enxerguei, pela primeira vez, a entrada do Crematório, rodeado por um verde vultoso, onde cachorros passeiam e famílias fazem piquenique. As plantas, de espécies diversas, parecem acolher aquele núcleo de dor e gentilmente filtrar e diluir toda a dualidade existente neste plano.

Enxerguei ali, bem ali, que a vida se faz mais presente do que imaginamos. Entre lágrimas e abraços, há muito amor, nada mais que amor. Por quem se foi, por quem ficou.

Mais do que uma despedida, acontece ali um encontro, celebrado com uma dança de almas, imperceptível aos mais céticos que escutam somente uma música ou uma trilha, que revela a identidade de quem se foi, seu legado e, principalmente, a perfeita desordem e variedade da nossa raça.

Por aquele salão de concreto ecoou, somente nas horas em que ali estive, música clássica, samba, música religiosa, hino de clube de futebol, sertanejo e uma bossa nova baixinha e respeitosa. Não consegui controlar minha curiosidade por aqueles desconhecidos, que se tornaram, mesmo sem rosto e nome, mais próximos. Suspeito que, ainda por alguns segundos, minha alma tenha escapado para abraçar as demais e, por que não?, acompanhá-las, ainda que com alguns passos tímidos e apressados, em sua dança.

Lembro de ter lido em algum momento que a versão de Whitney Houston para I Will Always Love You foi a música mais tocada em funerais na década de 90 no Reino Unido. Quem não se lembra de Candle in the Wind, adaptada por Elton John para Lady Di? Ou do tributo de Joe Cocker, durante um show em Berlim, para a princesa do povo?

Entre tantas músicas que amo, não consigo ainda escolher aquela que me serviria. Talvez não tenha chegado a minha hora; talvez não caiba a mim escolher. Daí a pergunta: que música te representa?