Essa é a especialidade de Désirée, que não se cansa de surpreender até quem não a conhece tão bem. Ela não faz isso de propósito, muito menos para impressionar. Segue mesmo o que manda seu coração, mesmo que o caminho seja improvável, ainda que o percurso seja cheio de lombadas e buracos.
Ela foi uma menina estabanada, indisciplina e, diz, até um pouco preguiçosa. É difícil acreditar, pois escolheu para si a Engenharia Civil, um curso e uma carreira em que até hoje a proporção feminina é minoria. Por volta dos 22 anos, casou-se e viu o sonho de ser mãe se aproximar. Os filhos naturalmente chegaram e ela surpreendeu ao decidir se dedicar exclusivamente a essa história, colocando a carreira em stand-by.
Como a vida não poupa ninguém, ficou viúva 13 anos mais tarde, quando Hélio tinha apenas 12 anos e Giulliana, 7. Com a pensão que recebia, redobrou a dedicação aos filhos, segura de que ainda não era hora de reescrever sua história. As crianças ainda eram sua prioridade. Notou, porém, que uma vontade crescia dentro de si: a de se dedicar aos outros. “Engenheira que sou, eu não tinha muita ‘estrutura emocional’ para ser uma voluntária que visita pacientes de câncer em hospitais. Eu achava que não conseguiria ajudar essas pessoas, mas nutria a vontade de fazer a diferença”, conta.
Em 2012, uma nova história brotou naturalmente durante a cerimônia de fundação da Associação Brasileira de Síndrome de Ehlers-Danlos e Hipermobilidade (SED Brasil), criada por uma amiga para ampliar o acesso à informação sobre essa doença desconhecida e subdiagnosticada que afeta o tecido conjuntivo. Identificou-se instantaneamente com os sintomas e, a partir dali, os braços não ficaram mais cruzados. “A SED BRASIL e meu trabalho voluntário caíram no meu colo como um presente. Trabalho em uma associação de pacientes, mas não de doença terminal, e sei que faço a diferença na vida dos familiares e pacientes, pois as informações e parcerias trazidas de congressos e eventos, dentro e fora do Brasil, mudam vidas”, explica a hoje vice-presidente da entidade. A SED é uma doença genética rara, cuja incidência mundial é de, pelo menos, 1 para 5 mil pessoas.
Désirée descobriu também que aquela identificação inicial não era uma coincidência. Durante um congresso na Bélgica, o reumatologista chileno Jaime Bravo confirmou sua suspeita. A fisioterapeuta brasileira Neuseli Lamari fechou em 2015 o diagnóstico, que só reforçou seu propósito. “As pessoas com doenças raras são a minoria mais esquecida na atualidade. Talvez por que elas ainda não saibam da sua força e estão apenas começando a lutar pelos seus direitos. Até cerca de 40 anos atrás, essas pessoas eram consideradas aberrações de circo, retardadas ou aleijadas”, explica a ativista. “Com a descoberta do genoma humano, percebeu-se que essas pessoas tinham doenças genéticas e, com o desenvolvimento da genética, que a maioria dessas enfermidades eram raras. Então, o termo ‘doenças raras’ é muito novo, a luta é muito nova e nobre”.
Não pense que essa nova história de Désirée não é recheada de conflitos, componente indispensável em qualquer narrativa. “Vivemos na nossa bolha, com pessoas muito parecidas conosco com os mesmos gostos, mesma orientação sexual ou mesma classe social. Se somos privilegiados, nunca deveríamos esquecer isso. Sair dessa bolha e conhecer o diferente pode ser desconfortável, mas é necessário”. O que a engenheira civil encontrou foi um universo completamente diferente do seu. “No caso das doenças raras, por exemplo, quando comecei a conhecer essas mães e seus filhos, muitos com deficiência, alguns acamados, eu não estava preparada. Como falar com um paciente de Atrofia Muscular Espinhal (AME) ou de Osteogenesis Imperfecta (OI), que têm o cognitivo preservado apesar da doença? Aprendi que não existem respostas prontas, então o melhor é sempre perguntar. O diferente assusta mais por ser desconhecido do que por ser diferente. Nós não precisamos mudar, mas apenas aceitar o outro como ele é. A diversidade deveria nos aproximar e não o contrário”.
Nessa narrativa a presença de silenciosas protagonistas, que têm um papel fundamental na batalha pela vida e pelo direito à saúde no Brasil, sobressaiu-se. “Desde que comecei a trabalhar na causa das doenças raras, as mães sempre me chamaram a atenção. Talvez porque elas sejam a maioria na luta, pois 75% das doenças raras se desenvolvem na infância e a maioria é crônica, grave e degenerativa”, destaca. Sabe o que Désirée fez?
Resolveu escrever, não uma história, mas um livro para valorizar essas mulheres, a quem chama de mães raras. “É incomensurável a força dessas mulheres, que muitas vezes sozinhas, além de criar os filhos ainda lutam pelos direitos de outros pacientes. Diferente das mães de crianças com autismo, deficiência ou mesmo câncer, as mães raras estão isoladas. A falta de informação e a baixa prevalência das doenças faz essas mães não conhecerem outras na mesma situação. A solidão é algo único. O mundo precisa saber sobre essas mulheres”.
A autora garante que a descoberta é valiosa. “As pessoas estão se surpreendendo pois não é um mundo tão sombrio como elas imaginavam”. Palavra de quem faz a diferença ao escrever e reescrever histórias com toda paixão, legitimidade e determinação. “Sou feliz pois não paro de caminhar, de planejar e sonhar. E acho que tenho sucesso, que é ser hoje melhor que ontem, é progredir como ser humano”.
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