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Mas quem é que entra na praia de calça jeans?

Como a agenda já não suportava mais a quantidade de listas, os lembretes começaram a ocupar outros locais: o celular, o bloquinho que levo na bolsa, outro que fica no criado-mudo e o caderno de trabalho, sem contar os post-its espalhados pela casa. Em algum momento, eu aprendi que essa é a única forma de evitar uma traição da memória e cumprir todas as tarefas da vida profissional, da casa, da família ou pessoal. Só que essa eficiência tem um custo.

Essas listas e recados roubam, bem de mansinho, a alegria e a espontaneidade da vida. Cada item, por mais benéfico que seja, carrega o peso da obrigação. Tem, ainda, uma capacidade mágica e perversa: a da multiplicação. Parece que se reproduz em escala… Quer um exemplo?

Férias. Aquele período tão esperado é tema de várias listas – do gerenciamento do trabalho ao que não esquecer de colocar na mala, passando por desligar o gás, colocar água nas plantas e fechar os registros. Suficiente? Claro que não!

Porque tem a lista do que você tem que fazer nas férias – aquilo que você tem que ver, tem que fazer e tem que sentir no destino, de acordo com amigos, conhecidos, jornais, blogueiros e locais. A dica imperdível sempre vem acompanhada de um “você não pode perder”.  E quem quer deixar uma oportunidade passar?

Vixe!

Xô!

Tudo menos sentir aquele gosto azedo da frustração e do fracasso por não ter feito o suficiente, por não ter sido feliz como, olha a loucura, se deve.

Afinal, agora é assim: a gente tem que ser feliz 24/7, tem que aproveitar muito, tem que ser descolada e alegre, tem que tirar várias fotos bacanas – posadas e casuais (sic), tem que conhecer os pontos turísticos e os descolados, tem que comer a comida típica e conhecer os restaurantes estrelados, tem que isso e, ah, tem que aquilo também, com toda naturalidade do mundo. Nem vou entrar na praia das compras – céus!

Parece que, na tentativa de abraçar tudo e ser tudo, matamos a nós mesmos. Deixamos de ser e fazer o que se bem entende, o que a gente tem vontade, de acordo com as nossas preferências. Pode ser entrar na praia de calça jeans, porque deu vontade naquele momento, ou trocar uma tarde no shopping por uma soneca no banco da praça (calma, mãe, eu não fiz isso!) ou no conforto do hotel. Por que não? Caso contrário, pouco a pouco, abrimos mão do nosso livre arbítrio, da nossa liberdade, sem perceber.

Em Braving the Wilderness, que não teve (eu acho) tradução para o português, a pesquisadora Brené Brown  recorda uma entrevista da poeta Maya Angelou a Bill Moyers, na qual afirmou:

“Você somente é livre quando percebe que você não pertence a lugar algum – você pertence a todos os lugares – a lugar nenhum. O preço é alto. A recompensa é ótima”

Brené, fã assumida de Maya, lutou contra essa declaração durante muito tempo. Afinal, quem não quer pertencer? Não é essa, consciente ou inconscientemente, a razão de várias das nossas ações e reações? O motivo pelo qual a gente se submete a tanta coisa, leva tão a sério as dicas e conselhos, sofre com a pressão social, imposta ou não?

Após muitos anos, Brené não só percebeu que carregava em si a estranha dicotomia de se sentir sozinha e de ao mesmo tempo pertencer a um grupo, ainda que fosse à sua família, como também escreveu um livro sobre isso, no qual explica, em tradução livre, que “Pertencer verdadeiramente é a prática espiritual de acreditar e pertencer a si mesmo tão profundamente que você pode compartilhar o seu eu mais autêntico com o mundo e encontrar o sagrado em ambos, sendo parte de algo e permanecendo sozinho no deserto. O verdadeiro pertencimento não exige que você mude quem você é; requer que você seja quem você é”.

Está conectado a algo que passamos, eventualmente, uma vida tentando construir: a autoestima. “Ser autêntico significa conseguir expressar no comportamento o que está dentro de nós. A autenticidade requer a ousadia de ser quem realmente somos”, resume o psiquiatra Diogo Lara, no livro Imersão.  Na ficção, ele coloca em discussão como o processo de educação e adequação à sociedade nos rouba a tão almejada autenticidade. Para Lara, a autoestima é formada por autoaceitação, autorrespeito, autoempatia, autenticidade, autoeficácia e automerecimento, expressos, respectivamente, nas seguintes frases:

Eu me aceito

Eu zelo por mim

Eu me acolho

Eu sou

Eu consigo

Eu mereço

 

Fato é: com a autoestima em dia ou pertencendo a nós mesmos, fica mais fácil abandonar o tem que e tornar a rotina, não só as férias, mais leves, alegres e espontâneas. As preferências, desejos e estranhezas ganham espaço, junto com a tão almejada felicidade.

Foi assim, juntando as peças aqui e ali, que aliviei o excesso de bagagem emocional e me libertei do tem que. Ah, sabe o que eu trouxe das férias? Uma pedra, um livro e uma coleção  de memórias, como os respingos gelados do mar em uma tarde de sol quente de outono, com as gaivotas bradando de um lado, os novos amigos rindo do outro e um coração bem vivo bailando no meio.