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Foto da Wikipedia – Tela “A Noite Estrela”, de Junho de 1889, pertence ao MoMa

Assim explicou Don McLean a criação de Vincent, tributo que prestou na década de 1970 a Van Gogh[1]. A ideia surgiu, segundo o compositor, após ler uma biografia do pintor holandês. Em entrevista ao inglês The Telegraph, ele confessou que ficou tão tocado pela história que decidiu desmistificar o mito de que Van Gogh era louco[2].

McLean se sentiu inundar por um sentimento lisonjeiro de infelicidade ao admirar A Noite Estrelada ( The Starry Night, em inglês), uma paisagem fictícia criada por Vincent, que adicionou um pequeno vilarejo à vista que tinha da janela do seu quarto no hospício de St. Rémy. Rapidamente ele pegou um pedaço de papel e deixou que essa pintura agridoce ditasse cada verso da canção. Anotou o mais rápido que pode – só para não interromper o fluxo de inspiração.

Cartas a Théo é um dos livros disponíveis sobre Vincent Van Gogh. Esta obra, lançada no Brasil pela Editora L&PM, trata-se de um compilado de cartas escritas pelo pintor. Está registrado ali o homem culto, que se encanta pelas grandes obras da literatura mundial; o homem sensível, apaixonado pela natureza, pelo ser humano e pela vida, de quem tirava a inspiração para a sua obra; e, também, o homem atormentado que não se encaixava na sociedade e se agoniava por ser um peso ao irmão, de quem dependia financeiramente. Vendeu somente uma obra em vida – A Videira Vermelha, em 1890, meses antes de morrer.

Vincent, porém, fez questão de dizer, mais de uma vez, ao irmão e marchand Théo, quatro anos mais novo, que o considerava um artista como ele. “Gostaria muito de fazê-lo entender esta verdade: que dando dinheiro aos artistas, você mesmo está realizando uma obra de artista, e que eu apenas desejo que minhas telas cheguem a ser tais, que você não fique insatisfeito com o seu trabalho”[3].

E foi essa alma, tão controversa, tão generosa, tão humana, que McLean traduziu em sua música, também uma obra de arte.

 

Vincent (Don McLean)

Cartas a Théo (Vincent Van Gogh)

Starry starry night, paint your palette blue and grey / Noite estrelada, pinte sua paleta de azul e cinza

Look out on a summer’s day with eyes that know the darkness in my soul / Olhe para um dia de verão com olhos que conhecem a escuridão na minha alma

Shadows on the hills, sketch the trees and the daffodils / Sombras nas colinas, desenhe as árvores e os narcisos

Catch the breeze and the winter chills, in colors on the snowy linen land / Apanhe a brisa e os calafrios do inverno, em cores na terra coberta de neve

“Em certos momentos, quando a natureza fica tão bela quanto nesses dias, tenho uma lucidez terrível, e então não me reconheço mais e o quadro me vem como em sonho. Receio um pouco que isto tenha sua reação melancólica quando chegar o mau tempo, mas procurarei evitá-lo pelo estudo daquela questão de desenhar figuras de memória.”

 

Now I understand what you tried to say to me / Agora eu entendo o que você tentou me dizer

How you suffered for you sanity / Como você sofreu por sua sanidade

How you tried to set them free / Como você tentou libertá-los

They would not listen they did not know how, perhaps they’ll listen now / Eles não ouviram, não sabiam como, talvez eles escutem agora

 

“Nem sempre sabemos dizer o que é que nos encerra, o que é que nos cerca, o que é que parece nos enterrar, mas no entanto sentimos não sei que barras, que grades, que muros.  Será tudo isto imaginação, fantasia? Não creio; e então nos perguntamos: meu Deus, será por muito tempo, será para sempre, será para a eternidade?”

 

Starry starry night, flaming flowers that brightly blaze / Noite estrelada, flores flamejantes que brilham intensamente

Swirling clouds in violet haze reflect in Vincent’s eyes of china blue / Nuvens rodopiantes em neblina violeta refletem nos olhos de porcelana azul de Vincent

Colors changing hue, morning fields of amber grain / Cores mudando de matiz, campos matinais de grãos de âmbar

Weathered faces lined in pain are soothed beneath the artist’s loving hand / Os rostos desgastados com dor são acalmados sob a mão amorosa do artista

 

“Os ciprestes sempre me preocupam. Gostaria de fazer com eles algo como as telas dos girassóis, pois me espanta que ainda não os tenha feito como eu os vejo. Como linha e como proporção, é tão belo quanto um obelisco egípcio. E o verde é de uma qualidade tão distinta. É a mancha negra de uma paisagem ensolarada, mas é um tom negro dos mais interessantes, dos mais difíceis de fazer corretamente, que eu possa imaginar. Ora, é preciso vê-los aqui contra o azul, dentro do azul para dizer melhor. Para pintar a natureza aqui, como em qualquer lugar, é preciso estar nela por muito tempo.”

 

For they could not love you, but still your love was true / (Pois eles não podiam amar você, mas ainda assim seu amor era verdadeiro)

And when no hope was left in sight, on that starry starry night / (E quando nenhuma esperança foi deixada à vista, naquela noite estrelada)

You took your life as lovers often do / (Você tirou sua vida como os amantes costumam fazer)

But I could have told you, Vincent / Mas eu poderia ter te dito, Vincent

This world was never meant for one as beautiful as you / Este mundo nunca foi feito para alguém tão bonito quanto você

“O que faz com que eu saiba o que quero colocar em minha própria obra, e o que eu me esforçarei por atingir, por mais que eu tenha que me perder pessoalmente, é que tenho uma fé absoluta na arte.”

 

Starry, starry night, portraits hung in empty halls / Noite estrelada, estrelada, retratos pendurados em salas vazias

Frameless heads on nameless walls with eyes that watch the world and can’t forget / Cabeças sem moldura em paredes sem nome, com olhos que observam o mundo e não conseguem esquecer

Like the stranger that you’ve met, the ragged man in ragged clothes / Como o estranho que você conheceu, o homem esfarrapado em roupas esfarrapadas

The silver thorn of bloody rose, lie crushed and broken on the virgin snow / O espinho prateado da rosa sangrenta, jaz esmagado e quebrado na neve virgem

“Por mais que esta etapa tenha sido dura para mim, e que eu tenha voltado esgotado, os pés machucados, e num estado mais ou menos melancólico, não me arrependo, pois vi coisas interessantes, e aprende-se a ver com olhos mais justos nas duras provas da própria miséria.”

 

Now I think I know what you tried to say to me / Agora eu acho que sei o que você tentou me dizer

How you suffered for you sanity / Como você sofreu por sua sanidade mental

How you tried to set them free / Como você tentou libertá-los

They would not listen they’re not listening still / Eles não ouviram, eles ainda não ouviram

Perhaps they never will / Talvez eles nunca o façam

“A partir do momento em que nos esforcemos em viver sinceramente, tudo irá bem, mesmo que tenhamos inevitavelmente que passar por aflições sinceras e verdadeiras desilusões; cometeremos provavelmente também pesados erros e cumpriremos más ações, mas é verdade que é preferível ter o espírito ardente, por mais que tenhamos que cometer mais erros, do que ser mesquinho e demasiado prudente. É bom amar tanto quanto possamos, pois nisso consiste a verdadeira força, e aquele que ama muito realiza grandes coisas e é capaz, e o que se faz por amor está bem feito.

Quando ficamos admirados com um outro livro, tomando ao acaso: A andorinha, A Calhandra, O rouxinol, As aspirações do outono, Daqui eu vejo uma senhora, Eu amava esta pequena cidade singular, de Michelet, é porque estes livros foram escritos de coração, na simplicidade e na pobreza de espírito. Se só pudéssemos dizer umas poucas palavras, mas que tivessem um sentido, seria melhor que pronunciar muitas que não fosse mais que sons vazios, e que poderiam ser pronunciadas com tanto mais facilidade, quanto menos utilidade tivessem.

Se continuarmos a amar sinceramente o que na verdade é digno de amor, não desperdiçarmos nosso amor em coisas insignificantes, nulas e insípidas, obteremos pouco a pouco mais luz e nos tornaremos mais fortes.”

 

 

 

 

[1] Vincent (Starry, Starry Night) – Don McLean: https://donmclean.com/vincent-starry-starry-night/.

[2] Don McLean interview: Why I had to write Vincent – The Telegraph: https://www.telegraph.co.uk/culture/music/rockandpopfeatures/7264618/Don-McLean-interview-Why-I-had-to-write-Vincent.html

[3] Gogh, Van Gogh. Cartas a Théo. Tradução de Pierre Ruprecht. L&PM Pocket.