Gonçalo Anes é conhecido na terra de Camões como Bandarra, palavra relacionada à boemia ou vadiagem, segundo me contaram lá na sua terra, a aldeia de Trancoso. Ele ganhou tal acunha pelas noitadas nas tabernas, o que de forma alguma o definiu. Nascido no fim do século XV, esse personagem tornou-se uma figura ilustre na sua região e no seu país.

A estátua em sua homenagem ocupa hoje local privilegiado: em frente à Câmara do município, com pouco mais de 360 km² e 10 mil habitantes. O pequeno povoado acostumou-se a celebrar o sapateiro, homem simples, mas culto. Entre as suas ferramentas, estava também uma pena, que não poupava nada nem ninguém. Em seus escritos, ele falava da corrupção, dos costumes, da Igreja e da religião. Em um país católico, sua interpretação das escrituras tornou-se sacrilégio, tanto quanto as críticas ao Clero.

Como nas Alcaçarias
Andam os couros às voltas,
Assim vejo grandes revoltas
Agora nas Clerezias.

Porque usam de Simonias
E adoram os dinheiros,
As Igrejas, pardieiros,
Os corporais por mais vias.

O sumagre com a cal
Faz os couros ser mociços.
Ah! quantos há maus noviços
Nessa Ordem Episcopal.

Porque vai de mal a mal,
Sem ordem nem regimento,
Quebrantam o mandamento,
Cumprem o mais venial.

Bandarra foi perseguido e preso pela Inquisição, incomodada com as ideias que propagava em suas trovas. Se não bastasse a “tinta” ferina, o sapateiro também era vidente – e dos bons!

Teria previsto, inclusive, a invasão francesa a Portugal. Daí Fernando Pessoa chamá-lo de “Nostradamus dos Portugueses”.

“Tudo tenho na moleira,

O passado, e o futuro,

E quem for Homem maduro

Há de me dar fé inteira.”

Nada escapava de Bandarra. Quando os dois guardas da Inquisição chegaram para prendê-lo, ele disse: “Saem três de Trancoso, voltam dois.” É fato: um dos oficiais morreu, inesperadamente, na saída da cidade.

Em outra ocasião, disse a um caixeiro viajante que ele não precisava se preocupar com o pagamento, pois o amigo voltaria e o encontraria “meio fora, meio dentro”, pronto para acertar as contas. Pois assim ocorreu – só que Barradas estava dentro de um baú, no cortejo do seu funeral, pago integralmente pelo comerciante.

“Em dois sítios me achareis

Por desdita, ou por ventura,

Os ossos na sepultura

E a alma nestes papeis.”

A “Santa” Inquisição Portuguesa fez muitas vítimas nos séculos XVI e XVII. Bandarra foi preso, julgado e condenado pelo Tribunal do Santo Ofício a não mais divulgar suas trovas, interpretar a Bíblia ou escrever sobre temas religiosos. Desgostoso, ele voltou à sua aldeia e se isolou de todos. Faleceu em 1646 e ganhou, no ano seguinte, uma sepultura na Igreja de São Pedro.

Contudo, os censores só calaram o autor de obras, que permaneceram vivas, circulando pelo mundo pelas mais diferentes mãos de admiradores – de Dom Vasco Luís da Gama, que providenciou a publicação das trovas na França, a Padre Antônio Vieira e o já mencionado Fernando Pessoa, que o descreveu da seguinte forma:

“Sonhava, anónimo e disperso,

O Império por Deus mesmo visto,

Confuso como o Universo

E plebeu como Jesus Cristo.

Não foi nem santo nem herói,

Mas Deus sagrou com o seu sinal

Este, cujo coração foi

Não português, mas Portugal.”

Hoje a aldeia de Trancoso possui um pequeno museu dedicado ao filho ilustre.  A “Casa do Bandarra” apresenta declarações de moradores sobre o conterrâneo, ferramentas da antiga sapataria e as famosas trovas, declamadas em um melodioso Português de Portugal.

Tanto este espaço, quanto a preservação de sua memória, ensinam que a intolerância e a estupidez não suprimem a arte, nem apagam um legado. Pode demorar, mas a verdade sempre vem à tona e atravessa os séculos só para nos recordar de que a humanidade tem, e sempre teve, as suas sombras, mas também emana uma inigualável luz. Esta é a sua verdadeira assinatura.