Mal entrei na casa da artista e um agudo ecoou no ambiente. Não era uma nota musical, mas um aviso de que (mais) uma parte de Amália Rodrigues se mantém viva e atende pelo nome de Chico.
A rainha do fado era fã de papagaios. Chico conviveu com ela entre 1991 e 1999, ano de sua morte. Nativa da África Subsaariana, essa espécie cinzenta, quase prata, é considerada a mais inteligente do mundo. Quando abre as asas, revela uma cauda cor de sangue.
Chico atravessou dias ensolarados e nublados. Os dois últimos anos de vida de Amália não foram fáceis. Após a morte do marido César, que conheceu no Brasil, ela se entregou ao silêncio e à melancolia, tão dissonantes da mulher de voz forte, sorriso largo, presença irreverente no palco e na vida.
Até então, a cantora portuguesa costumava ter a casa, localizada na Rua de São Bento, em Lisboa, cheia de amigos das mais diferentes personalidades e nacionalidades. Entre eles estava o nosso Vinícius, que se sentava ao piano, na sala decorada com azulejos brancos e azuis, para dedilhar histórias, fado, samba e poesia.
Ali ele cantou para ela.
Ali ela cantou para ele.
Ali eles gravaram, em 1968, o álbum “Amalia/Vinicius”, lançado somente dois anos depois, por causa da censura salazarista, que proibiu até a reprodução das 19 faixas nas rádios.
Chico ainda não estava lá, mas vive até hoje na mesma casa onde ocorreu esse e outros encontros memoráveis. Amália concebeu a ideia da casa-museu, que preserva seu legado, antes de falecer. O papagaio passou por um período de adaptação – não estranhou o vai e vem de pessoas, mas os novos rostos que passaram a zelar por si. Há 23 anos ele mantém o hábito de chamar por Amália, assim como a Caruso, um dos cachorros da cantora, também já falecido, e Eugenia, a empregada e cuidadora de outrora.
Na porta da geladeira, ainda há uma foto sua com Amália. É nesse ambiente que ele fica nos dias de chuva, quando se afasta do lindo jardim, onde o fado também se mantém vivo.
A visitantes como eu, Chico recepciona, encanta, assobia e oferece um pouco do mundo de sua dona, que ainda me reservou, naquela tarde de verão, outras surpresas.
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