Cada vez que ouvia essa expressão pelos corredores do mundo corporativo, Camila escondia dentro de si a frustração por nunca ter experimentado essa sensação. Não entenda mal, ela gostava do que fazia, mas nunca se sentiu realmente realizada. Isso começou a mudar em 2016, quando resolveu reconfigurar sua carreira para seguir uma velha paixão.

A vocação de Camila apareceu aos 15 anos, durante uma visita a uma exposição de fotografia. Jovem, ela não entendeu aquela faísca e, quando chegou a hora de escolher uma faculdade, ela, como quase todo mundo, ouviu mais a razão. “Os colégios tinham um trabalho árduo em nos tornar os melhores vestibulandos nos cursos mais tradicionais possíveis. As informações vinham dos professores, de feiras de carreiras e do  Guia do Estudante. Entre Arqueologia, Direito e Jornalismo, optei por este último”, contou. “Queria salvar o mundo. Mal sabia que na vida, nossa principal luta é em salvar nosso próprio mundo e, quem sabe, conseguir alcançar mais alguns outros por aí.”

O destino, porém, nos cerca de várias formas – ainda que sutis. Na faculdade, as aulas de fotografia reacenderam a paixão, que acabou sendo novamente colocada de lado. Camila calou o coração, seguiu o rito e deixou, por muitos e muitos anos, que o senso de responsabilidade ou de obrigação falasse mais alto na hora de tomar decisões. “Eu estava tão absorvida pela vida corporativa que, entre um curso que melhorasse meu desempenho e outro que talvez fosse só um hobby, eu acabava escolhendo sempre o que era “mais indicado” para a carreira. Passei muitos anos fazendo o que queriam de mim ou o que eu achava que tinha por obrigação fazer, porque era o que o mundo exigia. Sempre que uma angústia batia e eu decidia fazer algo por mim, logo boicotava o ensejo, colocando um monte de desculpas em cima.”

Ela demorou 20 anos para ouvir aquela adolescente. E pagou um preço alto por isso. “Comecei a ficar muito doente, crises e crises de enxaqueca, crises de ansiedade, pânico, depressão. Minha saúde física começou a ser atingida e nenhum médico descobria o que tinha. Passava mais tempo no pronto socorro ou na cama do que trabalhando. É claro que meu resultado caiu, parei de render, não conseguia mais acordar, não tinha mais vontade de nada.”

Desesperada, Camila até tentou o velho remédio – inscreveu-se em um MBA, que a reanimou, mas não por muito tempo. “Ele dava uma acelerada, várias ideias surgiam, queria ganhar o mundo de novo, até acordar no dia seguinte e ter que ir para o trabalho. Aí morria mais uma vez.”

Em um dos piores dias, ou talvez em um breve momento de lucidez, ela decidiu se desviar do caminho de sempre. Simplesmente faltou à aula e se deixou levar por um impulso. “Parei no primeiro lugar vazio que encontrei para jantar e comecei a escrever para todo mundo que conhecia e trabalhava com fotografia ou que a tinha como arte. Pedi indicações de cursos, de escolas, pedi referências. Entrei nos sites, liguei, queria um curso que começasse aquela semana mesmo.”

Resultado: trancou o MBA, juntou uma grana, comprou uma câmera T5 da Canon e se inscreveu no curso profissionalizante da Fullframe.  As aulas aconteciam aos sábados, e ela se lembra de ter voltado chorando para casa várias vezes – só que não mais de desespero, de felicidade. “Eu Me questionava: por que demorei tanto tempo para ir atrás de algo que sempre quis. Mas dizem que as coisas têm o tempo certo, né?”

Foi, então, que ele apareceu. E Camila se lembra direitinho de onde estava e o que estava fazendo. “Eu tive consciência do brilho nos meus olhos em uma aula de estúdio, enquanto a gente arrumava os equipamentos que seriam usados naquele dia. Ver o resultado de toda aquela preparação e técnica é indescritível. Quanto mais mergulhava nas aulas e mais aprendia, mais eu tinha certeza de que era o que queria para mim.” Ela entendeu, então, o que essa expressão queria dizer. “Com a fotografia, voltei a me sentir viva novamente. Voltei a sorrir com a alma.” O trabalho tornou-se, para ela, um revitalizante natural. “Com o tempo, eu percebi que  a fotografia me acalma e me faz presente. Quando não estou bem e tenho um job de fotografia, por exemplo, principalmente em espetáculos, que é a área que mais amo, volto renovada. A fotografia basicamente me trouxe de volta à vida.”

Para quem acha esse papo muito romântico, Camila não esconde como é difícil iniciar uma nova carreira. “Mudar pode ser extremamente solitário e dolorido. Você vai ouvir mais opiniões contrárias do que de apoio, mesmo que as pessoas não se percebam que estão fazendo isso. Um monte de críticas nada construtivas ou até mesmo conselhos ou chacotas que tentam te afastar do que você está buscando. Empatia, muitas vezes, passa longe. Tem um trecho do livro, Alma Imoral, do Nilton Bonder, em que ele fala exatamente sobre isso, sobre as transgressões da alma, sobre como aquilo que quebra o processo coletivo de anestesia te transforma em um “estrangeiro” ao olhar do outro, um estranho. Não tem jeito, mesmo quando a pessoa fala pensando no seu bem, toda opinião vem sempre nutrida das experiências e valores deste outro, o que nem sempre atende ao que você está buscando ou precisando naquele momento. No fim, a decisão é só nossa, e se você está consciente do que você quer e de até onde você aguenta, vai e se joga. Nada na vida é permanente mesmo. Amanhã você recebe uma ligação, seu mundo cai e tudo muda novamente.”

Ela conta que, há dias em que nuances de cinza cismam em borrar sua composição. E é, nesse momento, que Camila se lembra da sua própria história e de tudo que já viveu. “Como estou em transição, todo dia paraliso um pouco, mas sinto mais medo mesmo é de continuar fazendo por mais 30 anos o que já sei que não quero, o que já sei que me deixa doente, que me faz mal.”

Para cumprir o seu destino, ela enfrenta a timidez e arrisca até fazer planos. “Para quem tem transtorno de ansiedade e depressão como eu, pensar no futuro só piora os sintomas. Por outro lado, quando penso com o coração, vejo como minha vida voltou a ter cores. Sinto muita vontade de viver e me sentir viva, sinto necessidade de continuar aprendendo muito e conhecer pessoas e coisas novas que agreguem valor ao que hoje sei que quero. Se for para falar em sensações, vejo um futuro interessante, com todas as nuances e reviravoltas da vida, mas com uma sensação boa. Atualmente, mesmo nos meus dias mais tensos e desesperadores, não sinto 1/10 da angústia que sentia antigamente. Não ganho o que que ganhava, tem meses que ainda falta para completar, mas o que sinto por dentro não se compara. Não dá para explicar.”

Camila cuida com carinho do seu brilho nos olhos e deixa que uma nova vida vá se revelando naturalmente a cada clique. “Quando você lida diretamente com outras pessoas, no momento em que elas se colocam em frente à câmera, muitas delas trazem junto diversos questionamentos internos, dúvidas, inseguranças. Outras trazem à tona meus próprios questionamentos e vulnerabilidades. No fim, estamos todos no mesmo barco. Como lidamos como as situações é que acaba fazendo a diferença. Se você ainda consegue perder o ar e sorrir diante de alguns momentos, você é um privilegiado. Na maioria dos dias, as pessoas só estão correndo contra o tempo. A fotografia me dá esse tempo, de olhar, observar, respirar, sorrir, sentir. É um universo dentro de um instante.”

E ela sabe que, assim, faz as pazes com a pessoa mais importante do mundo: ela mesma. “A gente deveria aprender a ouvir mais o que sente. Aquela garota de 15 anos e, talvez, até mesmo antes, sabia muito mais o que deveria fazer da vida do que minha versão adulta. Aquela garota merecia uma chance de ser ouvida. Eu devia isso a ela.”

 

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