Roberta: leitora, contadora de histórias e livreira, na sua Mandarina (Arquivo Pessoal)

Roberta nunca se esqueceu das visitas que fazia à casa da avó quando era criança. Ela nem sabia ler, mas já gostava de se acomodar junto à estante de livros. Lembra-se do esforço que fazia para segurar aqueles volumes de capa dura do Sítio do Pica Pau Amarelo, de Monteiro Lobato. Cada página que virava era um tesouro que ela desenterrava. O cheiro abafado, aqueles que só os livros antigos sabem exalar, entorpecia a imaginação da menina, que degustava o formato das letras e se divertia com as ilustrações. Ali, meio sem querer, como uma brincadeira, Roberta abriu o primeiro de muitos portais mágicos de histórias. 

Outra experiência inesquecível aconteceu aos 12 anos, quando a pequena leitora foi passar férias na fazenda de uma amiga da família, na região serrana do Rio de Janeiro. Todos os dias ela acordava cedo, ia ao curral tirar leite e depois saía para cavalgar. Só voltava quando o sol ficava forte demais e o cavalo pedia arrego. Roberta, porém, tinha sede de aventuras. “Depois do almoço, eu me deitava na rede, na varanda ou debaixo de alguma árvore, e lá de Petrópolis eu me transportava pelas palavras de Jorge Amado para Salvador, onde se passa Capitães de Areia.”

Parece exagero? Mas não é, segundo pesquisa da Durham University, em parceria com o jornal The Guardian com cerca de 1.500 leitores. Mais da metade admitiu escutar as vozes dos personagens, muitas vezes, vividamente, enquanto 48% reconheceram ter, também, experiências visuais e sensoriais durante a leitura. Muitos leitores disseram, ainda, que os personagens permaneceram consigo, influenciando seus pensamentos e comportamentos.

 

Aquela menina, que nunca foi uma leitora passiva, já que as histórias que lia frutificavam dentro dela, tornou-se logo uma contadora de histórias. Várias delas foram publicadas em jornais e revistas. Mesmo quando virou empresária, Roberta continuou laçando narrativas com a mesma impetuosidade com que dominava aquele cavalo na pré-adolescência. Ajudou a escrever e a reescrever, com a paixão de fã de Monteiro Lobato, os mais diferentes retratos do mundo corporativo.

Após vender o seu negócio, sem saber bem o que queria fazer, ela decidiu se reinventar e, por meio de oficinas de escrita e outros cursos, encontrou na literatura o seu caminho. Assim surgiu a Buki, que oferece uma experiência de empatia, ética e comunicação por meio de histórias, e a Mandarina, uma livraria de rua, instalada no coração de Pinheiros, em São Paulo. A rotina de Roberta tornou-se, então, um relato biográfico dos tempos que vivemos, com uma boa dose de conflitos, aventura e até de fantasia.

O “banquete literário” da Buki, que lidera junto com a sócia Raquel, roda empresas e universidades, como a PUC; já na livraria, ela acolhe com Daniela Amendola, uma das criadoras do Quintal Amendola, escritores e leitores. “Histórias não faltam. Até o dia 18 de agosto de 2019, quando abrimos as portas da Mandarina, estávamos imersas em caixas de livros para colocar nas prateleiras. No dia da inauguração, mais de mil pessoas passaram pelo nosso espaço, atraídas também pela presença do Milton Hatoum, que cedeu generosamente o tempo dele. Este dia foi uma loucura, pois o sistema não funcionou e a gente fez todas as vendas à mão!”.

Quem também já passou pela Mandarina, que promove grupos de leitura e cursos, foi Conceição Evaristo. “Teve uma adolescente que chegou duas horas antes porque queria muito encontrar a escritora. A gente promoveu esse encontro em um salão de beleza onde a gente sabia que a Conceição estava fazendo as unhas. A adolescente chorou, chorou, chorou copiosamente, tamanha era a sua emoção.”

Roberta conta que a vida de livreira é mais imprevisível do que imaginava – e ela nem se refere ao sensível mercado editorial brasileiro. “Cada conversa, cada encontro, é uma surpresa. Você pode achar que sabe muito sobre literatura e livros e, então, conhece uma pessoa que te dá uma aula sobre uma obra que está na sua prateleira ou, ainda, te apresenta um novo autor – sem contar as muitas histórias pessoais, de tristezas e de conquistas. É um deparar diário com novos conhecimentos. É por isso que eu digo que a livraria é muito mais do que uma loja; é um espaço de acolhimento e aprendizado, além de um oásis para quem quer respirar.”

Enquanto semeia a leitura aqui e ali, deixando que cada semente frutifique em seu tempo, Roberta faz dos livros o seu portal pessoal. “A literatura é o meu mindfulness. Ela tem essa capacidade de acalmar o cérebro, de organizar os pensamentos e de gerar reflexão. O texto que você lê sempre volta de alguma forma, provoca uma transformação interna e pode influenciar outras pessoas. É por isso que eu digo que a literatura tem esse poder de multiplicar ideias, atitudes e possibilidades. É encontrar um caminho pelo qual muitas vezes não se chega sozinho.”

A menina que devorava as letras de Monteiro Lobato e Jorge Amado, entre outros autores, hoje gosta de intercalar crônicas, contos, ensaios, poemas e romances. Para essa pandemia, em que a Mandarina não parou de funcionar, com o mesmo amor de sempre, mas com cuidados redobrados, Roberta resolveu resgatar, especialmente para esse blog, um trecho de O Velho e o Mar, clássico de Ernest Hemingway, que narra o embate do solitário e sábio pescador Santiago com a vida e com a natureza. “Li há poucas semanas e mostra bem que o sonho continua. O homem pode ficar acabado, mas jamais derrotado.”

Lá vai:

“Lá em cima, na cabana, o velho estava dormindo de novo, com o rosto escondido no monte de jornais que lhe servia de almofada. O garoto estava sentado ao seu lado, observando-o. O velho sonhava com leões.”